A
maneira petrarquista[1]
“Petrarca
forjou, para a posteridade, um idioma poético enormemente flexível. (...) O
drama e mesmo o romance mostram que o idioma petrarquista tornou-se a linguagem
obrigatória do amor.”[2]
“Críticos
frequentemente se referem a um ‘sistema petrarquista’. Não se pode dizer se os
petrarquistas eram conscientes da existência de algo dessa natureza. A
convenção era coerente e amplamente difundida, inestimável, parte do ar que
eles respiravam, e muitos deles provavelmente pensavam muito pouco sobre o assunto.”[3]
Francesco Petrarca (1304-1374), poeta e intelectual italiano |
As
convenções originadas a partir da lírica amorosa de Petrarca formam, na visão
de Leonard Forster, “o segundo grande sistema internacional de amor
convencional”[4],
situado no recorte temporal entre o amor cortês e o amor romântico. A galopante
influência de Petrarca sobre a literatura ocidental diz respeito ao surgimento
de todo um repertório particular de símbolos, representações, metáforas,
idealizações, oposições, tonalidades relacionadas ao amor, à experiência do ser
amante, e à figura da mulher amada. A compreensão de como o amor é visto no
Renascimento é, portanto, inseparável de um estudo aprofundado da produção do
poeta e intelectual italiano.
O que marca, no entanto, a dicção
amorosa petrarquista? Que timbre singulariza a sua voz?
Ora,
a poesia amorosa de Petrarca se estrutura a partir de um reconhecimento da
natureza paradoxalmente infernal, infernalmente paradoxal, da experiência do
amor. A criatividade de Petrarca se espraia sobre “o equilíbrio delicado entre
opostos, precário e sempre ameaçado”[5].
A sua expressão poética se debruça sobre o que de mais antitético pode haver na
experiência da entrega amorosa: o convívio íntimo entre prazer e dor, o
contraste brutal entre o fogo que pulsa no amante e o olhar gélido da amada, os
rápidos percursos da alegria mais plena à melancolia mais profunda. “Se boa por
que tem ação mortal? / Se má por que é tão doce o seu tormento?” – indaga Petrarca
no conhecido Soneto XXII, reconhecendo em seguida o absoluto abandono de si de
que o amor o tornou vítima: “A tão contrário vento em frágil barca, / Eu vou
para o alto mar e sem governo”[6].
Ainda
que seu objeto de indagação sejam as oscilações paradoxais do amor – a forma
como este, a um só tempo, injeta uma vida extraordinária e uma tristeza
visceral naquele que ama, ao ponto em que morrer de amor parece um destino
possível –, a linguagem de Petrarca lança mão de conceitos simples e imagens
concretas. Embora seus poemas “sejam o produto de emoções profundas, a sua
formulação é intelectual, e atingida em termos simples”.[7]
Materializam-se oposições como calor/frio, chama/gelo, guerra/paz. A amada é
tematizada como o sol do universo, ou como a chama que atrai a mariposa (o
amante). A simplicidade das metáforas de Petrarca faz com que tais imagens
possam ser exportadas para diferentes contextos, e posteriormente integradas a
uma convenção da qual a poesia amorosa petrarquista constitui a fonte. É em
função da flexibilidade desse vocabulário que Leonard Forster argumenta que o
repertório petrarquista se converteu, do Renascimento em diante, na linguagem
obrigatória do amor – conforme uma das epígrafes deste texto.
Soneto 18: Petrarca remete-se às belezas celestiais de sua amada |
A
poesia amorosa de Petrarca gravita em torno das experiências de um eu apenas moderadamente individualizado:
seus poemas se estruturam em primeira pessoa, mas a experiência do amor não é
singularizada ao ponto de não poder ser compartilhada por mais nenhum ser
humano. Petrarca interessa-se imensamente pelos efeitos do amor sobre aquele
que ama, e, na medida em que o faz, abre a possibilidade de que a sua poesia se
universalize.
O
eu petrarquista é laudatório:
fascina-o a forma como Laura, sobre quem todo esse amor de labaredas se
deposita, encarna tanto a perfeição física quanto a espiritual. A mulher amada
transcende tudo que pode haver sobre os céus e a terra, chegando mesmo ao ponto
de comandar as forças da natureza. Petrarca recorre a um amplo conjunto de
hipérboles para dar conta de tal superioridade – todas, é claro,
insuficientes.
Além
disso, porque o poder e a beleza da mulher amada são ilimitados, o poeta dedica
grande parte dos seus esforços ao elogio de tudo que lhe diz respeito – seus
objetos, suas conquistas, seus atributos físicos – ou mesmo daquilo que a ela
remete indiretamente – o local em que os amantes se encontraram pela primeira
vez ou a cidade em que a dama vive, por exemplo. É no interior desse movimento
que a poesia petrarquista codifica, inclusive, um modelo específico de beleza
feminina: pele alva, olhos negros, cabelos dourados, dentes brancos e
perfeitos. No mais, recorre-se a comparações mitológicas e a descrições metafóricas, em
esforços sucessivos de encapsulamento de uma beleza verdadeiramente divina.
Não obstante o seu interesse pela
exterioridade do amor, é aos meandros internos da experiência amorosa que
Petrarca dedica a maior parte da sua atenção. Ao poeta são caras “a
interpenetração de prazer e dor, e a satisfação que poderia ser obtida do
equilíbrio difícil desses dois opostos”[8].
Visto como um sweet enemy, como uma life-in-death, o amor é comparado à
guerra; é apreendido como uma força descomunal cujo único efeito possível sobre
o sujeito é a renúncia completa de qualquer senso de individualidade. Prova
disso é a forma como as emoções do eu-petrarquista oscilam diante do
comportamento da amada: se ela se comporta com graça e ternura, o amante se
eleva, se regozija; se ela o trata com desdém, a ele resta um tormento maior do
que o mundo. De fato, é comum que a poesia amorosa de convenção petrarquista
enfatize a crueldade da dama – que, naturalmente, não foi tomada pelas forças
do amor, e vê com desprezo os paroxismos em que seu amante se contorce.
O amor de Petrarca é um amor que
exige padecimento físico: diante da distância da amada e de suas sucessivas
demonstrações de indiferença, “o amante emagrece, não consegue dormir, tem a
pele pálida como a de um cadáver; suas lágrimas fazem com que o nível dos rios
suba”[9].
Afligido por um quadro tão massacrante, o sujeito petrarquista contempla o
suicídio, mas vê-se diante de uma barreira religiosa: segundo a visão da
Igreja, aqueles que se suicidam arderão para sempre no fogo do inferno.
Qualquer possibilidade de fuga às vicissitudes do amor se elude, e o poeta se
converte num morto-vivo ambulante, perfeitamente roubado de sua individualidade
pelo sentimento que dele se apossa e que sobre ele se impõe, minimizando sua
independência e sua constituição enquanto sujeito.
No clímax da poesia de Petrarca, os opostos se fundem. Conforme argumenta Forster:
No clímax da poesia de Petrarca, os opostos se fundem. Conforme argumenta Forster:
Originalmente, os
conceitos de vida e morte eram colocados lado a lado de forma mais ou menos
concreta; gradativamente, eles se tornam relacionados, e adentram uma espécie
de tensão em que se tornam inseparáveis, intercambiáveis, e finalmente quase
idênticos. O mesmo percurso se verifica em outros pares antitéticos:
calor-frio, tristeza-alegria, doçura-amargura, dia-noite, medo-esperança, libertação-servidão
etc. [10]
A
consolidação do “sistema petrarquista” é um marco fundamental do Renascimento
em termos de como o amor era tematizado artística e intelectualmente. A compreensão
da poesia paradoxal e intensa, ainda que formalmente simples, de Petrarca, é
decisiva para um entendimento mais amplo desse período e dessa visão de amor. A
dicção de Petrarca se alastrou consideravelmente por dentro e por fora da
Itália. Conforme Forster, “a atitude da época era a favor da imitação, então
poetas em vários países imitaram o que era imitável – a dicção estereotípica,
mas infinitamente flexível do petrarquismo”[11].
[1]
Referência básica: FORSTER, Leonard. The
Icy Fire. Five Studies in European Petrarchism. Cambridge: Cambridge University
Press, 1969.
[2] FORSTER, p. 8.
[3] FORSTER, p. 20.
[4] FORSTER, p. 2.
[5] FORSTER, p. 3.
[6] PETARCA, Francesco. Cancioneiro. Rio de Janeiro: Ediouro. Tradução
de Jamil Almansur Haddad. Disponível em: <http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/pidp/pidp010713.htm>
[7]
FORSTER, p. 7.
[8]
FORSTER, p. 13.
[9]
FORSTER, pp. 15-16.
[10]
FORSTER, p. 20.
[11]
FORSTER, p. 23.
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