segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A maneira petrarquista

A maneira petrarquista[1]

“Petrarca forjou, para a posteridade, um idioma poético enormemente flexível. (...) O drama e mesmo o romance mostram que o idioma petrarquista tornou-se a linguagem obrigatória do amor.”[2]

“Críticos frequentemente se referem a um ‘sistema petrarquista’. Não se pode dizer se os petrarquistas eram conscientes da existência de algo dessa natureza. A convenção era coerente e amplamente difundida, inestimável, parte do ar que eles respiravam, e muitos deles provavelmente pensavam muito pouco sobre o assunto.”[3]

Francesco Petrarca (1304-1374), poeta
e intelectual italiano
          As convenções originadas a partir da lírica amorosa de Petrarca formam, na visão de Leonard Forster, “o segundo grande sistema internacional de amor convencional”[4], situado no recorte temporal entre o amor cortês e o amor romântico. A galopante influência de Petrarca sobre a literatura ocidental diz respeito ao surgimento de todo um repertório particular de símbolos, representações, metáforas, idealizações, oposições, tonalidades relacionadas ao amor, à experiência do ser amante, e à figura da mulher amada. A compreensão de como o amor é visto no Renascimento é, portanto, inseparável de um estudo aprofundado da produção do poeta e intelectual italiano.
            O que marca, no entanto, a dicção amorosa petrarquista? Que timbre singulariza a sua voz?
Ora, a poesia amorosa de Petrarca se estrutura a partir de um reconhecimento da natureza paradoxalmente infernal, infernalmente paradoxal, da experiência do amor. A criatividade de Petrarca se espraia sobre “o equilíbrio delicado entre opostos, precário e sempre ameaçado”[5]. A sua expressão poética se debruça sobre o que de mais antitético pode haver na experiência da entrega amorosa: o convívio íntimo entre prazer e dor, o contraste brutal entre o fogo que pulsa no amante e o olhar gélido da amada, os rápidos percursos da alegria mais plena à melancolia mais profunda. “Se boa por que tem ação mortal? / Se má por que é tão doce o seu tormento?” – indaga Petrarca no conhecido Soneto XXII, reconhecendo em seguida o absoluto abandono de si de que o amor o tornou vítima: “A tão contrário vento em frágil barca, / Eu vou para o alto mar e sem governo”[6].
Ainda que seu objeto de indagação sejam as oscilações paradoxais do amor – a forma como este, a um só tempo, injeta uma vida extraordinária e uma tristeza visceral naquele que ama, ao ponto em que morrer de amor parece um destino possível –, a linguagem de Petrarca lança mão de conceitos simples e imagens concretas. Embora seus poemas “sejam o produto de emoções profundas, a sua formulação é intelectual, e atingida em termos simples”.[7] Materializam-se oposições como calor/frio, chama/gelo, guerra/paz. A amada é tematizada como o sol do universo, ou como a chama que atrai a mariposa (o amante). A simplicidade das metáforas de Petrarca faz com que tais imagens possam ser exportadas para diferentes contextos, e posteriormente integradas a uma convenção da qual a poesia amorosa petrarquista constitui a fonte. É em função da flexibilidade desse vocabulário que Leonard Forster argumenta que o repertório petrarquista se converteu, do Renascimento em diante, na linguagem obrigatória do amor – conforme uma das epígrafes deste texto.
Soneto 18: Petrarca remete-se às
 belezas celestiais de sua amada
A poesia amorosa de Petrarca gravita em torno das experiências de um eu apenas moderadamente individualizado: seus poemas se estruturam em primeira pessoa, mas a experiência do amor não é singularizada ao ponto de não poder ser compartilhada por mais nenhum ser humano. Petrarca interessa-se imensamente pelos efeitos do amor sobre aquele que ama, e, na medida em que o faz, abre a possibilidade de que a sua poesia se universalize.
O eu petrarquista é laudatório: fascina-o a forma como Laura, sobre quem todo esse amor de labaredas se deposita, encarna tanto a perfeição física quanto a espiritual. A mulher amada transcende tudo que pode haver sobre os céus e a terra, chegando mesmo ao ponto de comandar as forças da natureza. Petrarca recorre a um amplo conjunto de hipérboles para dar conta de tal superioridade – todas, é claro, insuficientes.
Além disso, porque o poder e a beleza da mulher amada são ilimitados, o poeta dedica grande parte dos seus esforços ao elogio de tudo que lhe diz respeito – seus objetos, suas conquistas, seus atributos físicos – ou mesmo daquilo que a ela remete indiretamente – o local em que os amantes se encontraram pela primeira vez ou a cidade em que a dama vive, por exemplo. É no interior desse movimento que a poesia petrarquista codifica, inclusive, um modelo específico de beleza feminina: pele alva, olhos negros, cabelos dourados, dentes brancos e perfeitos. No mais, recorre-se a comparações mitológicas e a descrições metafóricas, em esforços sucessivos de encapsulamento de uma beleza verdadeiramente divina.
 Não obstante o seu interesse pela exterioridade do amor, é aos meandros internos da experiência amorosa que Petrarca dedica a maior parte da sua atenção. Ao poeta são caras “a interpenetração de prazer e dor, e a satisfação que poderia ser obtida do equilíbrio difícil desses dois opostos”[8]. Visto como um sweet enemy, como uma life-in-death, o amor é comparado à guerra; é apreendido como uma força descomunal cujo único efeito possível sobre o sujeito é a renúncia completa de qualquer senso de individualidade. Prova disso é a forma como as emoções do eu-petrarquista oscilam diante do comportamento da amada: se ela se comporta com graça e ternura, o amante se eleva, se regozija; se ela o trata com desdém, a ele resta um tormento maior do que o mundo. De fato, é comum que a poesia amorosa de convenção petrarquista enfatize a crueldade da dama – que, naturalmente, não foi tomada pelas forças do amor, e vê com desprezo os paroxismos em que seu amante se contorce.
            O amor de Petrarca é um amor que exige padecimento físico: diante da distância da amada e de suas sucessivas demonstrações de indiferença, “o amante emagrece, não consegue dormir, tem a pele pálida como a de um cadáver; suas lágrimas fazem com que o nível dos rios suba”[9]. Afligido por um quadro tão massacrante, o sujeito petrarquista contempla o suicídio, mas vê-se diante de uma barreira religiosa: segundo a visão da Igreja, aqueles que se suicidam arderão para sempre no fogo do inferno. Qualquer possibilidade de fuga às vicissitudes do amor se elude, e o poeta se converte num morto-vivo ambulante, perfeitamente roubado de sua individualidade pelo sentimento que dele se apossa e que sobre ele se impõe, minimizando sua independência e sua constituição enquanto sujeito.
              No clímax da poesia de Petrarca, os opostos se fundem. Conforme argumenta Forster:

Originalmente, os conceitos de vida e morte eram colocados lado a lado de forma mais ou menos concreta; gradativamente, eles se tornam relacionados, e adentram uma espécie de tensão em que se tornam inseparáveis, intercambiáveis, e finalmente quase idênticos. O mesmo percurso se verifica em outros pares antitéticos: calor-frio, tristeza-alegria, doçura-amargura, dia-noite, medo-esperança, libertação-servidão etc. [10]
          
          A consolidação do “sistema petrarquista” é um marco fundamental do Renascimento em termos de como o amor era tematizado artística e intelectualmente. A compreensão da poesia paradoxal e intensa, ainda que formalmente simples, de Petrarca, é decisiva para um entendimento mais amplo desse período e dessa visão de amor. A dicção de Petrarca se alastrou consideravelmente por dentro e por fora da Itália. Conforme Forster, “a atitude da época era a favor da imitação, então poetas em vários países imitaram o que era imitável – a dicção estereotípica, mas infinitamente flexível do petrarquismo”[11].          




[1] Referência básica: FORSTER, Leonard. The Icy Fire. Five Studies in European Petrarchism. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.
[2] FORSTER, p. 8.
[3] FORSTER, p. 20.
[4] FORSTER, p. 2.
[5] FORSTER, p. 3.
[6] PETARCA, Francesco. Cancioneiro. Rio de Janeiro: Ediouro. Tradução de Jamil Almansur Haddad. Disponível em: <http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/pidp/pidp010713.htm>
[7] FORSTER, p. 7.
[8] FORSTER, p. 13.
[9] FORSTER, pp. 15-16.
[10] FORSTER, p. 20.
[11] FORSTER, p. 23.

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